Aquela viagem
Lembras-te?
um punhal de dias
dentro
de uma panela a refogar devagarinho.
Lembras-te?
Ainda bem que escrevi aquilo
sobre os filmes se parecerem com a vida e não o contrário…
Isto há de passar num festival de cinema em atenas,
“A nova nouvelle vague”:
a nova nova fornada de gente que vê tudo distorcido
e tudo nítido e tudo estranho
porque tudo não é afinal tão estranho
como os estranhos que somos quando se faz a pergunta certa.
Mas no meio dessa merda triste agridoce orgásmica
sem o esperma no chão mas com o arrepio por de trás da barriga
nós andámos por aí de tasco em tasco,
copo em copo a viver com pouco
muito pouco
mas juro que não estávamos a tentar ser nada.
Em roma sê romano.
no resto do mundo sê de onde vieste.
No resto do mundo sê honesto
Sê honesto e serás de montemor e de todas as outras terras bonitas
Sê honesto e cumprimenta a maria do café
só porque a maria do café é simplesmente terra da terra.
Sê honesto.
Mas tem cuidado com a cinematografia e a gula…
a cinematografia e a gula
a cinematografia e a gula
talvez não sejam o que faz andar isto,
mas são o que nos faz andar nisto.
São mesmo,
Fome de escuro
fome de não saber onde se chega quando se chega
fome de estar sujo
de decrescer, de ser ineficiente, de ser preguiçoso
de pegar, agarrar, esticar espremer
sentir.
Deixem nos achar que somos especiais
Deixem nos fazer o que queremos
que nem sequer é o que queremos
porque o que queremos não existe porra
O querer é o branco num fundo preto que nunca vai deixar de ser preto,
Nunca.
Fecha os olhos.
É preto pa
A luz tenta entrar mas é preto pa
É preto pa
e eu só quero um pouco mais de branco
só quero desprender esta corda mais um bocado.
Nunca farei revoluções,
esperarei por elas
e lutarei para que a espera pela próxima
seja melhor que a anterior.
Chama-me o que quiseres
Estarás errado e estarás
Não vês que sou só a terra que calquei Homem?!
Somos todos terra
Aguenta que somos todos terra
E que vamos todos cair sabe-se lá onde e como
Pensas o quê?
que vale a pena adivinhar a face do dado que cai voltada para cima?
que vale a pena achar que tudo ou nada é suficiente?
que vale a pena ficar acordado se é dormir que o corpo pede?
Pensas o quê? que os braços e as pernas não falam connosco?
O gregory do Kafka tinha asas nas costas.
Podia ter voado dali para fora mas não sabia que as tinha
E nós pa?
Não andaremos para aqui a fugir ao voo?
Não andaremos?
Não andaremos?
Porra.
Não andaremos?
Porque isto não é sobre mim
isto não é sobre uma viagem à hippielândia
isto não é para meia dúzia de putos como nós.
Isto não é uma crítica pa.
Que crítica?
A nossa vida é o que é.
é feita de pessoas…
de pessoas boas e más que fazem escolhas boas e más.
Fizeram-se estas escolhas
poderiam ter sido outras.
Isto é sobre nadar porra
isto é sobre usar as asas,
isto é sobre aceitar a contingência de tudo
a estranheza de tudo
Isto é sobre não saber porquê este mar
isto é sobre não saber onde fica este mar
isto é sobre não saber para onde vai este mar
Isto é simplesmente sobre aprender a nadar.
